segunda-feira, 18 de abril de 2016

ARTIGO

Por Thaís Nicoleti[*]


Hoje, na Folha, foi publicada uma reportagem acerca do livro “Romance Moderno”, de Aziz Ansari, em que o autor investiga os dilemas dos relacionamentos modernos, mediados pelas mensagens de texto.
Embora o autor tenha feito pesquisas em conjunto com um sociólogo, suas conclusões sobre os truques que compõem o jogo do relacionamento não vão muito além dos conselhos da vovó (seja difícil, crie expectativa), que, transpostos para o mundo virtual das mensagens de texto, assumem nova roupagem: nunca responda imediatamente a uma mensagem, pois o outro vai achar que você não tem nada a fazer (seja difícil), não envie nova mensagem antes de receber uma resposta (não pressione o outro), a quantidade de texto na resposta deve ser similar à da mensagem recebida (não seja ansioso), não convide o outro para “fazer alguma coisa”, seja específico (seja assertivo, não hesitante) e por aí vai, sem garantia, é claro, de sucesso na empreitada.
Entre os problemas do relacionamento por mensagens de texto arroladas aparece o dos erros gramaticais, que, segundo a reportagem, “levam a uma brochada imediata”. E agora, José?
Geralmente, quando se fala em erro gramatical em contextos como esse, parece haver uma espécie de consenso sobre o que seja isso, mas, como sabemos, o tema é mais espinhoso do que parece à primeira vista.
Creio que o que possa prejudicar o jogo erótico, à luz do texto, é a percepção do erro. Se os dois escrevem “concerteza” (assim mesmo), nenhum deles percebe o erro de grafia, certo? Se, no entanto, um deles souber que a forma correta é “com certeza”, fatalmente perceberá que o outro cometeu um erro primário de grafia. Em tese, as coisas podem azedar. (Será?)
Um erro de grafia ligado à alfabetização na língua materna e, mais que isso, à falta de contato com a língua escrita sinaliza nível cultural baixo, o que, por sua vez, talvez não empolgue o/a pretendente na hora da sedução – pelo menos, é o que se afirma na reportagem. O exemplo acima, infelizmente, é real. A internet está coalhada de “concertezas” (!).
Embora esse erro, em particular, possa ser associado à falta absoluta de leitura, há outros de mesma natureza, cometidos por uma fatia letrada da população. É o caso de “afim” no lugar de “a fim”. É extremamente comum e certamente mais tolerado do que “concerteza”, embora em ambos haja o mesmo tipo de problema: juntar o que é separado.
ENTRANDO NA BRINCADEIRA
É difícil saber se é verdade ou mentira que a gramática influi no jogo de sedução, mas, entrando na brincadeira, aqui vão algumas dicas para quem fica inseguro na hora de enviar uma mensagem de texto.
COM CERTEZA, SERÁ BOM CONHECER VOCÊ MELHOR
Diferentemente de “concerteza”, a palavra “afim” realmente existe – e com a agravante de que também existe “a fim de”, uma locução prepositiva. Dá-se, então, a confusão entre duas grafias existentes na língua.
“Com certeza” escreve-se em duas palavras, como as outras locuções iniciadas pela preposição “com”: com elegância, com afinco, com precisão, com atenção, com indignação, com surpresa, com charme, com convicção, com um sorriso nos lábios…
Essas locuções geralmente indicam o modo como uma ação se desenvolveu. Dizemos, por exemplo, frases como estas: Olhou com espanto, Recebeu com alegria a notícia, Respondeu com elegância, Agiu com violência etc.
“Afim”, por sua vez, quer dizer “parecido”, “semelhante” (Temos ideias afins) e, na condição de substantivo, pode indicar parentes por afinidade (Os afins foram lembrados no testamento). Essa palavra é muito usada, porém de maneira incorreta.
ESTÁ A FIM DE SAIR?
Certamente (com certeza), nas mensagens que os casais trocam, em algum momento um vai perguntar se outro está “a fim de sair, de se encontrar”. Note que, nesse caso, quando a ideia é demonstrar a vontade ou a intenção de fazer alguma coisa, é a locução “a fim de” que deve ser usada, a mesma que se emprega com a ideia de finalidade (Estudou durante as férias a fim de/ para obter bons resultados no vestibular). Esse tipo de erro pode ser facilmente evitado, não é?
HOJE À NOITE; A NOITE FOI BOA
E a crase? Como é que fica na hora de fazer um convite? Vamos lá: “Quer jantar hoje à noite?”. No dia seguinte, porém, a mensagem será outra: “A noite foi maravilhosa. Vamos repetir?”.
Quando a “noite” está indicando o momento de realização de uma ação (jantar, sair à noite), a palavra integra a locução “à noite”, sempre craseada. Se, no entanto, a “noite” for o tema da conversa, a palavra estará no sujeito da oração, precedida apenas de um artigo, sem possibilidade de ocorrer crase (A noite foi ótima!).
TU E VOCÊ
Há, porém, alguns “erros” (assumindo o ponto de vista da norma-padrão) que constituem traços de informalidade. Um exemplo disso é a mistura de tratamentos (tu, te/você). É muito comum o uso de “te” na linguagem informal, embora o pronome “tu” esteja em via de aposentadoria.
Ouvimos, a toda hora, frases do tipo “Você quer que eu te ligue amanhã?”. Para corrigir, teríamos “Você quer que eu lhe ligue amanhã?” ou “Tu queres que eu te ligue amanhã?”. As formas corretas parecem muito formais, diferentes daquelas que os falantes usam no dia a dia, em situações de descontração.
Outra possibilidade de correção seria “Você quer que eu ligue para você amanhã?”. Alguns não gostariam de repetir o pronome “você” e prefeririam apagar o pronome objeto “para não errar”, optando por “Você quer que eu ligue amanhã?”. Aviso: apagar o pronome objeto não é melhor do que repetir o pronome “você”. Esse apagamento, no entanto, é bastante comum na língua, sobretudo em registros menos formais.  A repetição, por outro lado, é excessivamente combatida.
Num caso como esse, sendo a conversa informal, melhor mesmo é relaxar. Se o papo estiver animado, dificilmente o interlocutor se incomodará com isso.
EU CONHEÇO ELE (?)
Outro exemplo desse tipo é o do uso do pronome pessoal do caso reto (ele, ela) como objeto direto: “Eu encontrei ele ontem”, “Você já conhecia ela?”. Para muita gente (escolarizada, letrada), isso nem parece erro, de tão comum que está entre falantes que conhecem a norma culta e são capazes de transitar de um registro para outro.
As correções (“Eu o encontrei ontem”, “Você já a conhecia?”) tendem a parecer formais, mas há quem prefira usá-las até para impressionar positivamente o interlocutor.
O, A/ LHE
Nesse caso, recomenda-se não confundir os pronomes “o” e “lhe”. Por exemplo: “Eu jamais o permitiria fazer isso”.  Parece bonito, não? O pronome “o”, no entanto, foi empregado no lugar de “lhe”. Para não cometer esse erro, lembre-se de que “lhe” substitui “a ele” ou “a ela” (ou “a você”). A frase, portanto, seria esta: “Eu jamais lhe permitiria fazer isso”.
PRA MIM FAZER/ DEIXA EU VER (?)
O uso dos pronomes sempre provoca dúvidas, portanto vale o lembrete: evitar o “mim” como sujeito de infinitivo, o velho “pra mim fazer”, ainda comum tanto na fala como nas mensagens de texto.
O sujeito de um verbo (mesmo no infinitivo) é um pronome do caso reto (eu). É por isso que a estrutura correta, na língua-padrão, é “Ele disse para eu fazer a lista de convidados”, não “Ele disse para mim fazer a lista de convidados”.
As coisas, porém, nunca são tão simples. A frase “Deixa eu ver a foto!”, muito ouvida, também não está correta. Ora, mas o pronome do caso reto não é o sujeito do verbo “ver”?  Esse passo é um pouquinho diferente e mais complicado.
Por que, em vez de “Mandei ele trazer as bebidas de manhã”, devemos dizer “Mandei-o trazer as bebidas de manhã”? O caso é idêntico ao anterior. Note que os verbos “deixar” e “mandar” são transitivos diretos. Essa é a “pista”. Depois deles, o pronome, mesmo sendo sujeito de um infinitivo, permanecerá no caso oblíquo (me, te, se, o, a, nos, vos, os, as).
O resultado são frases como estas: “Deixe-me ver a foto!, “Mandei-o trazer as bebidas de manhã”, “Ela sempre me faz rir”, “Ela nos ouviu contar a história ao seu namorado”, Não o sinto incomodar-se com isso” etc.
HOMÔNIMOS E PARÔNIMOS
Confundir uma palavra com outra – e a nossa língua é cheia de homônimos e parônimos, o que é um convite à confusão – pode ser considerado um erro desagradável.
Não diga “áurea” (relativa ao ouro) quando quiser se referir à “aura” de uma pessoa. Não confunda “mandato da presidente” com “mandado de busca e apreensão”. Não use “tráfico” para falar do trânsito de automóveis (“tráfego”) nem confunda “sessão de cinema” (projeção do filme) com “seção de achados e perdidos” (setor que, em Portugal, é de perdidos e achados, na ordem em que as coisas ocorrem).
E ainda: nem tudo se escreve exatamente como se pronuncia. Nada de escrever “Estou com priguiça” só porque você pronuncia o “e” com som de “i”. A grafia correta é “preguiça”, com “e”. Você não pronuncia o “r” final dos infinitivos? Tudo bem, é normal, mas nem por isso você escreverá “Vou levá os doces”, “Você pode comprá as bebidas?”. Nada disso: “Vou levar os doces”, “Você pode comprar as bebidas?”.
A melhor dica sempre fica para o fim. Então lá vai: ler mais! Leitura (de bons livros) ajuda a pensar melhor, a fundamentar as opiniões e, de quebra, a fixar a gramática da língua. Quanto aos relacionamentos, a regra é não haver regras…




REFERÊNCIAS
NICOLETI, Thaís.   A língua portuguesa no romance digital. Disponível em: http://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2016/04/05/a-lingua-portuguesa-no-romance-digital/. Blog Jornal Folha de São Paulo, São Paulo: Acesso em: 14.abr.2016.





[*] Thaís Nicoleti de Camargo é consultora de língua portuguesa da Folha e do UOL, Seu blog discute questões e dá dicas para quem tem dúvidas no emprego da chamada norma cultas. E-mail:  thaisncamargo@uol.com.br

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