Por Thaís Nicoleti[*]
Hoje, na Folha, foi
publicada uma reportagem acerca do livro “Romance Moderno”, de Aziz
Ansari, em que o autor investiga os dilemas dos relacionamentos
modernos, mediados pelas mensagens de texto.
Embora o autor tenha feito
pesquisas em conjunto com um sociólogo, suas conclusões sobre os truques que
compõem o jogo do relacionamento não vão muito além dos conselhos da vovó (seja
difícil, crie expectativa), que, transpostos para o mundo virtual das mensagens
de texto, assumem nova roupagem: nunca responda imediatamente a uma mensagem,
pois o outro vai achar que você não tem nada a fazer (seja difícil), não envie
nova mensagem antes de receber uma resposta (não pressione o outro), a quantidade
de texto na resposta deve ser similar à da mensagem recebida (não seja
ansioso), não convide o outro para “fazer alguma coisa”, seja específico (seja
assertivo, não hesitante) e por aí vai, sem garantia, é claro, de sucesso na
empreitada.
Entre os problemas do
relacionamento por mensagens de texto arroladas aparece o dos erros
gramaticais, que, segundo a reportagem, “levam a uma brochada imediata”. E
agora, José?
Geralmente, quando se fala em
erro gramatical em contextos como esse, parece haver uma espécie de consenso
sobre o que seja isso, mas, como sabemos, o tema é mais espinhoso do que parece
à primeira vista.
Creio que o que possa prejudicar
o jogo erótico, à luz do texto, é a percepção do erro. Se os dois
escrevem “concerteza” (assim mesmo), nenhum deles percebe o erro de grafia,
certo? Se, no entanto, um deles souber que a forma correta é “com certeza”,
fatalmente perceberá que o outro cometeu um erro primário de grafia. Em tese,
as coisas podem azedar. (Será?)
Um erro de grafia ligado à alfabetização
na língua materna e, mais que isso, à falta de contato com a língua escrita
sinaliza nível cultural baixo, o que, por sua vez, talvez não empolgue o/a
pretendente na hora da sedução – pelo menos, é o que se afirma na reportagem. O
exemplo acima, infelizmente, é real. A internet está coalhada de “concertezas”
(!).
Embora esse erro, em particular,
possa ser associado à falta absoluta de leitura, há outros de mesma natureza,
cometidos por uma fatia letrada da população. É o caso de “afim” no lugar de “a
fim”. É extremamente comum e certamente mais tolerado do que “concerteza”,
embora em ambos haja o mesmo tipo de problema: juntar o que é separado.
ENTRANDO NA BRINCADEIRA
É difícil saber se é verdade ou
mentira que a gramática influi no jogo de sedução, mas, entrando na
brincadeira, aqui vão algumas dicas para quem fica inseguro na hora de enviar
uma mensagem de texto.
COM CERTEZA, SERÁ BOM CONHECER VOCÊ MELHOR
Diferentemente de “concerteza”, a
palavra “afim” realmente existe – e com a agravante de que também existe “a fim
de”, uma locução prepositiva. Dá-se, então, a confusão entre duas grafias
existentes na língua.
“Com certeza” escreve-se em duas
palavras, como as outras locuções iniciadas pela preposição “com”: com
elegância, com afinco, com precisão, com atenção, com indignação, com surpresa,
com charme, com convicção, com um sorriso nos lábios…
Essas locuções geralmente indicam
o modo como uma ação se desenvolveu. Dizemos, por exemplo, frases como
estas: Olhou com espanto, Recebeu com alegria a notícia,
Respondeu com elegância, Agiu com violência etc.
“Afim”, por sua vez, quer dizer
“parecido”, “semelhante” (Temos ideias afins) e, na condição de
substantivo, pode indicar parentes por afinidade (Os afins foram lembrados
no testamento). Essa palavra é muito usada, porém de maneira incorreta.
ESTÁ A FIM DE SAIR?
Certamente (com certeza), nas
mensagens que os casais trocam, em algum momento um vai perguntar se outro está
“a fim de sair, de se encontrar”. Note que, nesse caso, quando a ideia é
demonstrar a vontade ou a intenção de fazer alguma coisa, é a locução “a fim
de” que deve ser usada, a mesma que se emprega com a ideia de finalidade (Estudou
durante as férias a fim de/ para obter bons resultados no vestibular). Esse
tipo de erro pode ser facilmente evitado, não é?
HOJE À NOITE; A NOITE FOI BOA
E a crase? Como é que fica na
hora de fazer um convite? Vamos lá: “Quer jantar hoje à noite?”. No dia
seguinte, porém, a mensagem será outra: “A noite foi maravilhosa. Vamos
repetir?”.
Quando a “noite” está indicando o
momento de realização de uma ação (jantar, sair à noite), a palavra
integra a locução “à noite”, sempre craseada. Se, no entanto, a “noite” for o
tema da conversa, a palavra estará no sujeito da oração, precedida apenas de um
artigo, sem possibilidade de ocorrer crase (A noite foi ótima!).
TU E VOCÊ
Há, porém, alguns “erros”
(assumindo o ponto de vista da norma-padrão) que constituem traços de
informalidade. Um exemplo disso é a mistura de tratamentos (tu, te/você). É
muito comum o uso de “te” na linguagem informal, embora o pronome “tu” esteja
em via de aposentadoria.
Ouvimos, a toda hora, frases do
tipo “Você quer que eu te ligue amanhã?”. Para corrigir, teríamos
“Você quer que eu lhe ligue amanhã?” ou “Tu queres que eu te
ligue amanhã?”. As formas corretas parecem muito formais, diferentes daquelas
que os falantes usam no dia a dia, em situações de descontração.
Outra possibilidade de correção
seria “Você quer que eu ligue para você amanhã?”. Alguns não gostariam de
repetir o pronome “você” e prefeririam apagar o pronome objeto “para não
errar”, optando por “Você quer que eu ligue amanhã?”. Aviso: apagar o pronome
objeto não é melhor do que repetir o pronome “você”. Esse apagamento, no
entanto, é bastante comum na língua, sobretudo em registros menos formais.
A repetição, por outro lado, é excessivamente combatida.
Num caso como esse, sendo a
conversa informal, melhor mesmo é relaxar. Se o papo estiver animado,
dificilmente o interlocutor se incomodará com isso.
EU
CONHEÇO ELE (?)
Outro exemplo desse tipo é o do
uso do pronome pessoal do caso reto (ele, ela) como objeto direto: “Eu
encontrei ele ontem”, “Você já conhecia ela?”. Para muita gente
(escolarizada, letrada), isso nem parece erro, de tão comum que está entre
falantes que conhecem a norma culta e são capazes de transitar de um registro
para outro.
As correções (“Eu o encontrei
ontem”, “Você já a conhecia?”) tendem a parecer formais, mas há quem prefira
usá-las até para impressionar positivamente o interlocutor.
O, A/ LHE
Nesse caso, recomenda-se não
confundir os pronomes “o” e “lhe”. Por exemplo: “Eu jamais o permitiria
fazer isso”. Parece bonito, não? O pronome “o”, no entanto, foi empregado
no lugar de “lhe”. Para não cometer esse erro, lembre-se de que “lhe” substitui
“a ele” ou “a ela” (ou “a você”). A frase, portanto, seria esta: “Eu jamais lhe
permitiria fazer isso”.
PRA MIM FAZER/ DEIXA EU VER (?)
O uso dos pronomes sempre provoca
dúvidas, portanto vale o lembrete: evitar o “mim” como sujeito de infinitivo, o
velho “pra mim fazer”, ainda comum tanto na fala como nas mensagens de texto.
O sujeito de um verbo (mesmo no
infinitivo) é um pronome do caso reto (eu). É por isso que a estrutura correta,
na língua-padrão, é “Ele disse para eu fazer a lista de convidados”, não
“Ele disse para mim fazer a lista de convidados”.
As coisas, porém, nunca são tão
simples. A frase “Deixa eu ver a foto!”, muito ouvida, também não está correta.
Ora, mas o pronome do caso reto não é o sujeito do verbo “ver”? Esse
passo é um pouquinho diferente e mais complicado.
Por que, em vez de “Mandei ele
trazer as bebidas de manhã”, devemos dizer “Mandei-o trazer as bebidas de
manhã”? O caso é idêntico ao anterior. Note que os verbos “deixar” e “mandar”
são transitivos diretos. Essa é a “pista”. Depois deles, o pronome, mesmo sendo
sujeito de um infinitivo, permanecerá no caso oblíquo (me, te, se, o, a, nos,
vos, os, as).
O resultado são frases como
estas: “Deixe-me ver a foto!, “Mandei-o trazer as bebidas de manhã”, “Ela
sempre me faz rir”, “Ela nos ouviu contar a história ao seu namorado”, Não o
sinto incomodar-se com isso” etc.
HOMÔNIMOS E PARÔNIMOS
Confundir uma palavra com outra –
e a nossa língua é cheia de homônimos e parônimos, o que é um convite à
confusão – pode ser considerado um erro desagradável.
Não diga “áurea” (relativa ao
ouro) quando quiser se referir à “aura” de uma pessoa. Não confunda “mandato
da presidente” com “mandado de busca e apreensão”. Não use “tráfico”
para falar do trânsito de automóveis (“tráfego”) nem confunda “sessão de
cinema” (projeção do filme) com “seção de achados e perdidos” (setor
que, em Portugal, é de perdidos e achados, na ordem em que as coisas ocorrem).
E ainda: nem tudo se escreve
exatamente como se pronuncia. Nada de escrever “Estou com priguiça” só
porque você pronuncia o “e” com som de “i”. A grafia correta é “preguiça”, com
“e”. Você não pronuncia o “r” final dos infinitivos? Tudo bem, é normal, mas
nem por isso você escreverá “Vou levá os doces”, “Você pode comprá
as bebidas?”. Nada disso: “Vou levar os doces”, “Você pode comprar
as bebidas?”.
A melhor dica sempre fica para o
fim. Então lá vai: ler mais! Leitura (de bons livros) ajuda a pensar melhor, a
fundamentar as opiniões e, de quebra, a fixar a gramática da língua. Quanto aos
relacionamentos, a regra é não haver regras…
REFERÊNCIAS
NICOLETI, Thaís. A língua portuguesa no romance digital. Disponível em: http://thaisnicoleti.blogfolha.uol.com.br/2016/04/05/a-lingua-portuguesa-no-romance-digital/.
Blog Jornal Folha de São Paulo, São Paulo: Acesso em: 14.abr.2016.
[*]
Thaís Nicoleti de Camargo é
consultora de língua portuguesa da Folha
e do UOL, Seu blog discute questões e dá dicas para quem tem dúvidas no emprego
da chamada norma cultas. E-mail: thaisncamargo@uol.com.br
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